segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O TEATRO É A FEBRE – Entrevista com ator e autor Álamo Facó

Fala um pouco da sua trajetória como ator no teatro... Como é isso?

AF – Eu faço teatro desde muito novo e o que eu pude perceber é que existe uma simbiose entre minha trajetória pessoal e a minha trajetória profissional como artista. É difícil demarcar com precisão como é uma e como é a outra: a partir do momento que comecei a fazer teatro, fiz do teatro minha própria vida. Quero dizer com isso, que foram muitas criações, algumas terminadas e outras interminadas e incompletas, muitas trocas, e relações pessoais, de amizade, companheirismo, e pessoas que ficaram por minha vida para sempre. Mas o que poderia dizer até agora sobre essas trajetórias atravessadas – profissional e pessoal – é que existe uma busca, uma busca por alguma coisa que você não sabe muito bem o que é, mas que você necessita, que você sente falta. Na realidade a vida alimenta minha arte e a arte alimenta a minha vida.

Você fala de uma simbiose, como é isso exatamente?

AF – Vejo como uma opção. Eu opto por trabalhar assim, mas tenho consciência disso. Eu me dei conta depois de algum tempo em cena, que colocava muita coisa pessoal, muito das minhas experiências de vida no meu trabalho profissional, e esta mistura se dava às vezes racionalmente ou mesmo a partir de insights. Com a consciência deste ‘problema’ passei a me utilizar disso muito mais. E me dei conta de outra coisa tão importante quanto: Se eu já tenho isso espontaneamente, então o que eu posso fazer pra driblar isso? Para além disso poder usufruir no meu trabalho daquilo que eu não tenho pessoalmente? Daquilo que eu não tenho como característica pessoal, por exemplo? Esse outro lado também é bem importante. Como eu posso fazer pra partir do nada, partir do zero. E se não fosse eu fazendo esse personagem, e se nada disso existisse? E se eu tivesse que criar o lúdico, o diferente. Mas acho sempre que se tem que ter consciência dessa simbiose, se optar por isso e saber que isso não é regra. Completando, então a pergunta. Tem que se ter sempre a consciência de que o trabalho não é um depoimento pessoal, do seu momento de vida ou da sua experiência no passado. Não se pode nunca se limitar a isso, senão será um trabalho mesquinho. Esta simbiose é só mais uma opção, só mais uma possibilidade.

E essa discussão mais especificamente na relação do ator com os personagens?

AF – É difícil falar disso, não é falar se sou eu ou se não sou eu. É como falar do teatro realista e de uma interpretação naturalista. Essas são coisas que estão caindo, são cânones que não estão mais em voga. É claro que sou eu, mas em situações que eu não passaria. Situações que eu passaria em um ano, eu crio para cinqüenta minutos. O tempo é outro, o espaço é outro, e partir disso, o Álamo é outro. Porque eu não suo no meu quarto em cinqüenta minutos, mas eu suo muito em cena em cinqüenta minutos. O que acontece com ele, o leque de sensações, de opções e de lugares que ele vai passar concretamente, oniricamente, vai ser muito maior e mais forte do que na nossa vida cotidiana. Então sou eu sim: no lugar onde me colocam um novo Eu.

Até que ponto vai o seu domínio sobre esse novo Eu?

AF – Ah!.. domínio... nenhum. Eu tenho total domínio, mas não tenho menor domínio de como vai ser a peça no dia. Eu tenho domínio de tudo, domínio de como vou preparar um drinque que eu, na minha vida, nunca fiz, por exemplo. Na peça eu faço. Eu tenho total domínio que primeiro eu vou abrir um Gatorade azul, depois vou botar um pouco de uísque – porque é um drinque teatral – e cortar uma laranja e colocar ali. Coisa essa que eu não teria o menor dom no dia-a-dia e passo a ter por causa da peça. Eu tenho domínio disso, do concreto, mas de como isso vai ser feito... nenhum. Eu apenas me armazeno de coisas positivas, de relaxamento um pouco, para que tudo possa correr da melhor forma possível, mas o acaso é que é... eu acho que é esse risco que está imperando – Estou totalmente ligado a ele nesta peça. E talvez seja através dele que eu desenvolva um outro olhar. Com o passar do tempo no teatro, sem dúvida, eu fui me apaixonando por esse risco. Quando fico dez dias sem ensaiar, quando me distancio um pouco do teatro, eu começo a inventar outros riscos...

E como é este processo de criação como são os primeiros olhares sobre uma determinada obra?

Eu me aproximo intuitivamente o que é fundamental. Me aproximo sensorialmente, sinestesicamente de uma obra. Existe só uma sensação que eu não sei muito bem para onde vai me levar. Todo dia tem que ser um recomeço, toda hora está começando do zero. Toda nova peça é uma primeira peça. Não é como completar um quebra-cabeça, mas é como abrir um matagal a fundo: “Eu vou pra lá porque tem uma cachoeira que eu amo, mas que eu só ouvi falar e não sei nem para que norte é.”. Com o passar dos ensaios a razão vai ser um instrumento importante. Eu não posso deixar de interromper uma cena se eu descobrir alguma coisa importante, mesmo que ela esteja indo muito bem. A gente não vai deixar de parar, se tiver que anotar e analisar alguma descoberta importante. É como se esse cara que está abrindo o mato, tivesse que ter também uma bússola.
Uma questão que me veio a cabeça agora enquanto você falava... você pensa em cena?

AF -...pra caralho. Eu tava conversando isso com uma amiga minha esses dias. A gente pensa em cena. Mas o ator só se sente livre em cena, quando consegue pensar exatamente o que a situação, os objetos, a música e a história estão nos oferecendo ali. “Eu quero pensar como esse cara!” Eu estou tão livre, tão bem que, detalhezinhos de trazer essa mesa pra cá, empurrar essa cadeira aqui, acender esse luz, fluem! Eu penso exatamente com liberdade. Mas às vezes há um perigo nisso, quando você está muito tempo em cena. Quando você começa a ter a liberdade de pensar somente dentro da situação, você pode começar a se sentir muito bem, porque é muito prazeroso. E aí você pode querer degustar demais disso, mas não é exatamente isso que as pessoas querem ver. Tem que tomar cuidado. Se você está fazendo muito bem esse trabalho, vai começar a te dar um puta prazer, mas aí pode ser perigoso. Mas sobre o pensamento ainda: no cotidiano o pensamento poder ser mais esgarçado, mais preguiçoso talvez, no meu caso... que não trabalho para terceiros, que não tenho um senhor, um chicote...E m cena não, não dá pra ser assim...
Mas te transforma essa experiência?

AF – Transforma... não é um clichê. Todo mundo fala isso, não é? Mas transforma... Uma pergunta que você poderia me fazer é seguinte: “Mas isso tudo é verdadeiro...ou é químico?” É verdadeiro, mas... também é químico. Assim como você coloca x, y + z e tem um LSD, você passa uma hora por essas situações (fazendo do cérebro uma movióla, e acredita nisso!) e coloca cinqüenta pessoas pagando dinheiro (uma convenção universal, uma formalidade) e não pode parar, não pode parar por nada, e você tem que convencer... então você acaba por produzir o que não ainda ninguém examinou. Tudo isso é real. Esta experiência química é o seguinte: é como se você produzisse mais saliva, como se produzisse mais lágrima, como se o seu batimento cardíaco acelerasse, como se a sua sensibilidade ficasse mais aguçada. Como se descobrissem que um animal noturno não é ágil por igual durante toda noite, mas que em um determinado momento houvesse um ápice, e este ápice o saciasse por toda noite... Então o que há no teatro é esse condensamento...

A gente está falando de liberdade, mas um tema importante relacionado ao teatro é a repetição. Como você vê isso?

AF – O teatro é o espaço da liberdade, não se pode deixar se escravizar. Eu já fui escravo da repetição. Já fiz algumas peças no teatro, onde fiquei cinco vezes por semana repetindo, e isso me incomodou. Eu tentava driblar de forma artística esse incômodo, tenta me aproximar do que era divino ali, mesmo na repetição. Tentava buscar dentro dessa repetição um acontecimento, um happenig. Mas às vezes não tinha jeito, eu ficava entediado. Era uma peça que ficou em cartaz três anos, talvez tenha ficado tempo demais... Nessa peça que estou fazendo agora é totalmente diferente: a repetição está sendo a liberdade. Como se eu tocasse piano todos os dias e cada vez tocasse melhor – é livre. Essa peça é bem interessante, porque como é um espetáculo solo, quer dizer, eu e a platéia sozinhos por uma hora, esta coisa fica muito clara: repetindo uma partitura de uma hora todos os dias, você pode ver como cada dia é totalmente diferente do outro. Cada dia a coisa é única. Essa é a ‘maquininha’ da repetição – não tô falando de trabalho mecânico de dia-a-dia, de ficar carimbando – tô falando de um lugar onde você repete a mesma ação, mas tem risco ali, tem diálogo ali, tem tempo. Eu não faço essa peça em uma hora ou uma hora e meia – eu faço em uma hora. Tem tempo ali. Eu vario no máximo um ou dois minutos. E apesar dessa precisão como é que consegue ser tão diferente um dia do outro?

Como é essa relação com a platéia?


AF – Oscar Wilde falava que o único artista livre é aquele que não pensa no público. O ator pensa no público. Mas ele não pode fazer para o público. O ator pensa sem pensar no público. Você tem espectadores que vão para dar, e espectadores que vão para receber. O que vai para dar é muito mais interessante. Porque o que vai para dar, vai para trocar: ele está dando e recebendo. O outro que vai só para receber, é um espectador é viciadíssimo, é insuportável, ele diz: “Me dá aí!”. É complicado com esse espectador, às vezes dá vontade de parar a peça, mesmo sabendo que eu jamais faria isso. O outro que vem para dar e receber você pode remeter a milhões de coisas. Você pode remeter a sedução, você pode remeter a uma nova amizade. Quando o espectador está ali naquela cadeira em silêncio, ele está me contando mil coisas, ele está falando. Tem um jogo aí. Não é porque ele não está me falando, que ele não está me contando. Tinha que ter no hall de entrada uma esteira com um vídeo-arte em frente, antes de abrir a sala de espetáculo para deixar o espectador quente – aí o cara entra.
Você falou a pouco em acontecimento, em encontro, como é a sua relação com teatro?

AF – Existe uma reciprocidade entre o que o teatro me deu, e o que eu dei para o teatro. Então eu não sou um artista voraz que quer muito uma coisa e luta por isso a qualquer preço. Eu já recebi muita coisa que me causou motivo e curiosidade para ir além. Se não talvez eu já estivesse me relacionando com um outro tipo de experiência artística. Isso é a mesma coisa na relação com o personagem. Existe uma troca entre o ator e o personagem, onde um atravessa o outro. O personagem me modifica é certo, mas eu modifico o personagem também. Outra coisa importante que o teatro vem me dar é a cura. Mas não é qualquer cura, o teatro cura e adoece. Fisicamente então nem se fala. Parece que a gente adoece para curar. Sempre quando se aproxima de uma estréia eu adoeço fisicamente. O teatro me causa febre. O teatro é a febre. Eu tenho que brigar com ela, mas ela é foda! Ela primeiro descodifica seus hábitos, seu próprio corpo. Você não está como você está na feira, como você está em casa. Então como é que você vai lidar com ela? O teatro adoece para caralho. O teatro não dá para largar de mão, às vezes parece mais um vício arrebatador que você não pode larga. Então tem que ter uma preparação. Em tudo na vida tem que ter uma dosagem, a gente tem que descobrir uma alquimia. Então o que me adiante me dedicar intensamente a este trabalho, até onde teve ir minha dedicação? Pra quê, para ser melhor ator? Será que é isso? Por isso na preparação de uma peça, eu devo saber quanto eu devo me dedicar, e quanto eu devo largar de mão. Como se largar de mão fosse tão importante quanto a dedicação. Porque é nesse largar de mão que eu vou poder renovar o meu olhar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário