segunda-feira, 31 de agosto de 2009

D E N T R O E F O R A – Sábado de teatro em uma noite de chuva.

VIAJANTE SULISTA(sentado sozinho em uma mesa de bar com pose de narrador onisciente) Os bodes estão sentados em uma área de fumantes de um bar no Lgo. do Machado e conversam com lentidão. Fumam cachimbo. Acabaram de assistir ao espetáculo “In On It”, de Daniel Macivor, com Emílio de Melo e Fernando Eiras, dirigido por Enrique Diaz que os fez refletir. Na peça vemos dois atores que interpretam dois atores que interpretam alguns personagens de uma peça escrita por um dos atores, e essas muitas camadas se misturam até o ponto em que já se torna difícil separar essas múltiplas realidades, distinguindo o que está dentro e o que está fora do texto. Mise-en-Abyme. Quase já um clássico da nossa literatura moderna. Os bodes fazem uma pausa na discussão porque estão na dúvida se preferem pinga ou chá de jasmin para matar o frio. Bode Bill retoma o fio de meada depois de pedir um conhaque baratinho.

BODE BILL (acendendo o cigarro como um intelectual franco-magrebino) É incrível a entrega do Fernando Eiras que desde o início já está com os olhos marejados e a vulnerabilidade de quem está andando na corda bamba. Impressionante como ele sustenta esse estado até o final.

CABRA-FÊMEA(sonhadora e com fome) Mas nesse aspecto o Emílio de Melo é o contraponto perfeito. Morango e chocolate. Ele é seco, preciso...

BODE-BILL(pigarreando e assumindo um tom de desafio) Entretanto... não estaria já meio cansativa a tendência da arte em explodir as arestas do objeto-obra e sua ilusão de fechamento, para que as entranhas de seu processo de criação – o’real’ – se manifeste? O mecanismo de metalinguagem – que se tornou, como sabemos, protocolar em se tratando de nossos tempos – já não teria perdido sua força, sujeito também a previsões e esquematismos dos quais ele mesmo pretendia fugir? Sem dúvida, o espetáculo vai muito mais além do esquematismo ingênuo de cena-comentário-cena-comentário. Porém, os jogos de metalinguagem tropeçam numa última convenção...

CABRA-FÊMEA – (durona) O texto! Ele impera soberano na encenação, quase que subordinando os atores, não fossem esses tão geniais. Mas eu acho que eles são respeitosos demais com o texto de Macivor, que é bom, mas é distante do universo daqueles atores de carne e osso que estamos vendo diante de nós. Faltou presença do texto deles, do Eiras e do Emílio de Melo. Sem dúvida, ambos são o melhor da peça, que brilha justamente no momento em que ultrapassa as linhas escritas e se insere no corpo. A mão no peito da mulher de Eiras e o espanto de Emílio diante dela: dois atores de rostos abertos ao primeiro tapa – ou beijo –, em entrega total. Do desequilíbrio tênue e arriscado deste encontro, proporcionam instantes de uma criação imediata, efêmera, teatral – e, portanto, real. Não seria pelos truques formais de metalinguagem que algo de real aconteceria. E antes, que pudéssemos julgar ou refletir sobre seus atos, tudo se evapora como se nunca tivesse existido.


BODE BILL(com os olhos fixos em VIAJANTE SULISTA que disfarça o seu interesse na conversa) Como abrir a obra quando o texto vem fechado, lacrado e enlatado?

VIAJANTE SULISTA(conclusivo) A essa altura Cabra-Fêmea pede a conta, porque está enjoada com a mistura de conhaque e frango a passarinho. Os bodes se levantam e vão dormir em um motel cor-de-rosa-neon no bairro do Catete, onde estão hospedados.

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