sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A moeda miúda do atual (o novo de novo?)

Nos debates dessa quinta-feira chuvosa enquanto o TEMPO rasgava furiosamente os véus da cidade do rio, do lado de dentro no teatro da Oi o clima rolava estável e harmônico em boa parte do TEMPO. Na primeira rodada a discussão sobre o tempo físico segundo a visão de Mário Novello. Na segunda rodada, a discussão do tempo na cultura debatida por críticos e artistas de diferentes meios. E aqui lanço algumas reflexões que me ocorreram em meio ao debate:

Mas afinal o que QUER o nosso con(tempo)râneo? Desmontado o ideal de progresso, falido o projeto ’messiânico’ das vanguardas paralelamente a dissolução das utopias políticas, o que QUER isso que julgamos ser o nosso TEMPO? Será que o NOVO continua valendo como indíce e critério nisto que classificamos como con(tempo)râneo? O NOVO é realmente um valor indespensável para a criação artística? Há uma tendência de localizar e identificar o que seria o con(tempo)râneo, seja pelas novas mídias, seja pela diluição das fronteiras da arte, auto-ficções, vontade de real. Mas não haveria nessa tendência de classificar e localizar forçosamente categorias uma atitude moderadamente MODERNA? MAs não seria o Novo uma construção essencialmente moderna? o novo de novo? Reparo como nosso pensamento se embaraça ao tentar localizar aqui ou ali esse NOVO que garantiria então o status de nomear isso ou aquilo de con(tempo)râneo. Sinto que diante do desamparo (político, estético e ético) dos nossos tempos nos sentiríamos mais confortáveis, apaziguado e protegidos em determinar, definir e classificar o que acontece realmente de NOVO em nosso tempo. Percebo a partir dessa vontade (irrefreável) de novo, sobretudo estilmulada por uma cultura tecnológica e consumista, uma tendência a normatizar o nosso tempo. O NOVO normatiza. Pois o NOVO soa sempre como valor universal, tende sempre a generalizações. Não seria, por outro lado, mais inquietante (se bem que também desconfortável) mais arriscado perceber que o que está em jogo no con(tempo)râneo é justamente a falência desse ideal do NOVO? Em meio a diluição e os trânsitos do nosso tempo não seria vital tirar esse peso das costas e gritar que o NOVO morreu! Sim, é preciso admitir que o NOVO deixa saudade, deixa sempre essa bruma de nostalgia -”ah, onde estão as vanguardas?”. Porque o que nos foi prometido pelas velhas vanguardas é que o NOVO nos salvaria. Nasci em uma geração que sentia saudades e se identificava plenamente com os tempos que nunca viveu. E enaltecemos as conquitas dos velhos tempos (os heróis de 68, os gênios de 22) Mas e hoje?! Sejamos honestos: dos que não morreram , não enlouqueceram ou não deprimiram,em grande parte, nossos antigos heróis se tornaram os figurões do mercado financeiro. Não adianta procurar porque o NOVO não vem. Tudo que vem de NOVO e ganha ares de espetáculo se sustenta apenas por um narcisismo compensador de nosso desamparo.

Porque é tão dificil perceber nesse desamparo con(tempo)râneo um valor positvo? Talvez esteja aí a possibilidade de perceber no pequeno, na moeda miúda do atual, um valor. O NOVO bateu asas, e o que nos restou foi essa moeda miúda. O futuro é coisa do passado. Essa parece ser a condição de instabilidade do nosso tempo: o instante presente. E aí não tem jeito. Porque de um presente ao outro o que menos importa é o que se sustenta, o que menos importa é o que permanece. Os valores de nossa moeda miúda são tragicamente transitórios, instáveis e para sempre insuficientes . E se por um lado essa indeterminação radical tira os nossos convencionais apoios, por outro lado nos dá uma liberdade, um descompromisso reconfortante. Uma irresponsabilidade criadora. Mas permanentemente angustiante. Enfim: Para onde nos dirigimos? O que importa! Essa pergunta não pode ser formulada sem soar algo moralista, algo nostálgica.

Lanço a última provocação:

Seria demais pensar que o que separa um genial Mozart da cantora Stefhane (aquela do crossfox, fenômeno do youtube, Stefhane com ‘FH’ se lembram?) é uma linha muito tênue? Essa é uma provocação, mas também, um sinal de nossos tempos. Não tem jeito: o pequeno revolta-se contra o grande. E temos que suportar a pressão. Mas alguém ainda se lembra da Stefhane? E aí que o esquecimento também se torna um importante valor.

SIROCO (TEMPO FESTIVAL DAS ARTES)


O poema é do Mestre-Catatau,Leminski:

já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma


É tempo de fatigados corações, baços, pâncreas, olhos e mãos. É tempo de cansaço. Morrer de vez em quando esfria nossas cabeças. Como diria o filósofo: “o corpo já não agüenta mais”. É esse mormaço escravizante do mês de Dezembro.

Uma imagem do tempo:cena clássica de “Morte em Veneza”. Uma cidade molestada pela epidemia de cólera e a violência dos ventos quentes do ‘Siroco’ inflamando desejos e epidermes. Tadzo ri, simplesmente ri. Impassívelmente o jovem sorri e brinca na praia. O intelectual de meia-idade como de costume se senta na cadeira para apreciar seu menino, o ideal perseguido de eterna beleza. Esgotado e escravizado pelas exigências de uma perseguição inglória, de uma imagem que sempre escapa e escapa outra vez, o intelectual sucumbe. Seu rosto é derretido pelo tempo. Tempo físico e tempo filosófico. O calor faz escorrer a maquiagem desfigurando seu rosto em um caldo grotesco e amorfo. Suas lágrimas turvam-se.
 Ele está doente. Enfraquecido e esgotado por uma opressiva vontade de eternidade.

Desejo de Real (TEMPO FESTIVAL DAS ARTES)

Nessa noite de contemporânea discussão, quando os corpos e corações pensantes se reuniram para pensar o que os situa no mesmo grupo, (uma vez que já não parece haver nenhuma identidade do que aquela imposta por uma arbitrária linha do tempo) um outro tema emergiu do lado direito do meu cérebro: o amor…


Salta ao olhos que diante da proliferação de novas mídias, novas formas de relação, novas dinãmicas que desarticulam o eixo centro-periferia o desejo de realidade, de verdade, oriente como impulso primordial a criação artística. Diante da impossibilidade de definir identidades que nos situem no Tempo e no Espaço como estabeleceriamos uma idéia de comunidade, um vínculo entre eu e um outro? Depois da derrocada da tradição, dos costumes, dos lugares fixos o sistema capitalista moderno parece se manter apenas por um último baluarte: A idéia de que existe um “eu” que merece ser visto. Um espetáculo auto-ficcional que precisa sempre da legitimação e da visão desejante do outro. O eu-espetáculo, dos vídeos do youtube ou da performance contemporânea, sob a legitimação da idéia de uma auto-ficção, são ao mesmo tempo afirmação e derrocada da possibilidade de manutenção de um indivíduo atomizado e isolado. O narcisista precisa sempre do olhar desejante do outro para se lembrar que existe, não quer mais estar sozinho. Se já não queremos a solidão tampouco conseguimos pensar em laços que nos unam, fora dos valores transcendentais que evaporaram com o sangue das guerras passadas. Eis o nosso desafio, e é sempre bom que exista um, já não se trata do novo, nem do velho, nem da terra e quiçá tampouco do corpo, mas do amor, essa palavra brega, embalada em clichês e carolices que teimou em não me abandonar nessa noite de chuva no bonito e contemporâneo Oi Futuro…

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

NO FINAL ERA O MOVIMENTO (NO FINAL NÃO HAVIA, POIS, FINAL)

“Jogar não é emitir sinais; é ter, sob o invólucro da pele, o pâncreas, o baço, a vagina, o fígado, o rim e as tripas, todos os circuitos, todos os tubos, as carnes, pulsantes sob a pele, todo o corpo anatômico, todo o corpo sem nome, todo o corpo escondido, todo o corpo sangrando, invisível, irrigado, exigindo, mexendo ali debaixo, reanimando-se, falando.” (VALÈRE NOVARINA)


E será que a medicina finalmente descobriu o que acontece lá dentro do corpo de um artista quando ele está atuando ou dançando? Nesses corpos ninguém toca – nem mesmo a morte os amarraria numa cama de hospital para autopsia. Isso aí inerte na maca de metal sob a luz fria, em que os médicos se debruçam, não passa de letras mortas sobre o papel. Os corpos são tubos de ar rodeados de carne por todos os lados, define o artista-filósofo. Nesse sentido, já não há mais razão em falar de dentro ou de fora.

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Algumas perdas consideráveis para dança com raros destaques (se comparadas à sobrefalada perda de Michael Jackson): Pina Bausch e Merce Cunningham.
Valère Novarina afirma em seu texto Para Louis de Funès que o homem só possui uma aspiração, uma única paixão que o anima: mudar o corpo dado: Michael levou à risca essa premissa e refez seu corpo tantas e tantas vezes, que ao final da vida seu auto-retrato era um verdadeiro retalho de feridas pra lá de grosseiras. Certa vez um renomado escritor brasileiro afirmou, em emocionante defesa do astro pop no auge dos escândalos de pedofilia, que em um futuro não muito distante nos lembraríamos de Michael como genitor de uma linhagem de mutantes. Sem dúvida, uma boa imagem. Mas o fato é que o artista-mutante, que revolucionou a cultura pop, se tornou um prato cheio, tanto para os fetichismos do show business, quanto para os moralistas de plantão. Não há dúvida que a indústria cultural usou a e abusou das ‘excentricidades’ do astro, mas, ao mesmo tempo, talvez, nossas lentes sejam humanas demasiado humanas para compreender o pós-humanismo de Michael Jackson. O que nos assombra é que se trata de um caso único de um corpo sem nenhum fantasma – em Michael tudo é pura concretude e isso é assustador para nós.

Pina Bausch, Merce Cunningham e Michael Jackson, corpos dançantes da segunda metade do século XX que se evaporaram em um breve espaço de tempo. Apesar da mesma paixão nos três, em desfazer o corpo dado, reposicioná-lo na fronteira e compor um corpo transicional, é preciso distinguir os casos: Como comparar a tragicidade e o pós-expressionismo dos movimentos-repetições da criadora de Café Müller, com a objetividade e o puro movimento, não-expressivo, de Cunningham e o corpo simultaneamente deslizante e plástico do inventor do moonwalk? Para quem, como nós bodes, que infelizmente não tivemos a oportunidade de vê-los ao vivo, vale dar uma conferida no youtube.


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Não sabemos ainda o que pode o corpo. E com essa ignorância bendita gozamos como as criancinhas perverso-poliformas de Dr. Sigmund, dando as costas e a bunda aos caquéticos senhores de ciência que insistem em nos apresentar uma cartilha falida dos nossos afetos. As trinta mil mutações genéticas que produzem um quadro esquizofrênico, o nariz ausente de Michael, os pingüins de Cunningham e as costelas flutuantes de Pina mantêm abertas as janelas por onde o universo sopra – “This, planetary music.”

O TEATRO É A FEBRE – Entrevista com ator e autor Álamo Facó

Fala um pouco da sua trajetória como ator no teatro... Como é isso?

AF – Eu faço teatro desde muito novo e o que eu pude perceber é que existe uma simbiose entre minha trajetória pessoal e a minha trajetória profissional como artista. É difícil demarcar com precisão como é uma e como é a outra: a partir do momento que comecei a fazer teatro, fiz do teatro minha própria vida. Quero dizer com isso, que foram muitas criações, algumas terminadas e outras interminadas e incompletas, muitas trocas, e relações pessoais, de amizade, companheirismo, e pessoas que ficaram por minha vida para sempre. Mas o que poderia dizer até agora sobre essas trajetórias atravessadas – profissional e pessoal – é que existe uma busca, uma busca por alguma coisa que você não sabe muito bem o que é, mas que você necessita, que você sente falta. Na realidade a vida alimenta minha arte e a arte alimenta a minha vida.

Você fala de uma simbiose, como é isso exatamente?

AF – Vejo como uma opção. Eu opto por trabalhar assim, mas tenho consciência disso. Eu me dei conta depois de algum tempo em cena, que colocava muita coisa pessoal, muito das minhas experiências de vida no meu trabalho profissional, e esta mistura se dava às vezes racionalmente ou mesmo a partir de insights. Com a consciência deste ‘problema’ passei a me utilizar disso muito mais. E me dei conta de outra coisa tão importante quanto: Se eu já tenho isso espontaneamente, então o que eu posso fazer pra driblar isso? Para além disso poder usufruir no meu trabalho daquilo que eu não tenho pessoalmente? Daquilo que eu não tenho como característica pessoal, por exemplo? Esse outro lado também é bem importante. Como eu posso fazer pra partir do nada, partir do zero. E se não fosse eu fazendo esse personagem, e se nada disso existisse? E se eu tivesse que criar o lúdico, o diferente. Mas acho sempre que se tem que ter consciência dessa simbiose, se optar por isso e saber que isso não é regra. Completando, então a pergunta. Tem que se ter sempre a consciência de que o trabalho não é um depoimento pessoal, do seu momento de vida ou da sua experiência no passado. Não se pode nunca se limitar a isso, senão será um trabalho mesquinho. Esta simbiose é só mais uma opção, só mais uma possibilidade.

E essa discussão mais especificamente na relação do ator com os personagens?

AF – É difícil falar disso, não é falar se sou eu ou se não sou eu. É como falar do teatro realista e de uma interpretação naturalista. Essas são coisas que estão caindo, são cânones que não estão mais em voga. É claro que sou eu, mas em situações que eu não passaria. Situações que eu passaria em um ano, eu crio para cinqüenta minutos. O tempo é outro, o espaço é outro, e partir disso, o Álamo é outro. Porque eu não suo no meu quarto em cinqüenta minutos, mas eu suo muito em cena em cinqüenta minutos. O que acontece com ele, o leque de sensações, de opções e de lugares que ele vai passar concretamente, oniricamente, vai ser muito maior e mais forte do que na nossa vida cotidiana. Então sou eu sim: no lugar onde me colocam um novo Eu.

Até que ponto vai o seu domínio sobre esse novo Eu?

AF – Ah!.. domínio... nenhum. Eu tenho total domínio, mas não tenho menor domínio de como vai ser a peça no dia. Eu tenho domínio de tudo, domínio de como vou preparar um drinque que eu, na minha vida, nunca fiz, por exemplo. Na peça eu faço. Eu tenho total domínio que primeiro eu vou abrir um Gatorade azul, depois vou botar um pouco de uísque – porque é um drinque teatral – e cortar uma laranja e colocar ali. Coisa essa que eu não teria o menor dom no dia-a-dia e passo a ter por causa da peça. Eu tenho domínio disso, do concreto, mas de como isso vai ser feito... nenhum. Eu apenas me armazeno de coisas positivas, de relaxamento um pouco, para que tudo possa correr da melhor forma possível, mas o acaso é que é... eu acho que é esse risco que está imperando – Estou totalmente ligado a ele nesta peça. E talvez seja através dele que eu desenvolva um outro olhar. Com o passar do tempo no teatro, sem dúvida, eu fui me apaixonando por esse risco. Quando fico dez dias sem ensaiar, quando me distancio um pouco do teatro, eu começo a inventar outros riscos...

E como é este processo de criação como são os primeiros olhares sobre uma determinada obra?

Eu me aproximo intuitivamente o que é fundamental. Me aproximo sensorialmente, sinestesicamente de uma obra. Existe só uma sensação que eu não sei muito bem para onde vai me levar. Todo dia tem que ser um recomeço, toda hora está começando do zero. Toda nova peça é uma primeira peça. Não é como completar um quebra-cabeça, mas é como abrir um matagal a fundo: “Eu vou pra lá porque tem uma cachoeira que eu amo, mas que eu só ouvi falar e não sei nem para que norte é.”. Com o passar dos ensaios a razão vai ser um instrumento importante. Eu não posso deixar de interromper uma cena se eu descobrir alguma coisa importante, mesmo que ela esteja indo muito bem. A gente não vai deixar de parar, se tiver que anotar e analisar alguma descoberta importante. É como se esse cara que está abrindo o mato, tivesse que ter também uma bússola.
Uma questão que me veio a cabeça agora enquanto você falava... você pensa em cena?

AF -...pra caralho. Eu tava conversando isso com uma amiga minha esses dias. A gente pensa em cena. Mas o ator só se sente livre em cena, quando consegue pensar exatamente o que a situação, os objetos, a música e a história estão nos oferecendo ali. “Eu quero pensar como esse cara!” Eu estou tão livre, tão bem que, detalhezinhos de trazer essa mesa pra cá, empurrar essa cadeira aqui, acender esse luz, fluem! Eu penso exatamente com liberdade. Mas às vezes há um perigo nisso, quando você está muito tempo em cena. Quando você começa a ter a liberdade de pensar somente dentro da situação, você pode começar a se sentir muito bem, porque é muito prazeroso. E aí você pode querer degustar demais disso, mas não é exatamente isso que as pessoas querem ver. Tem que tomar cuidado. Se você está fazendo muito bem esse trabalho, vai começar a te dar um puta prazer, mas aí pode ser perigoso. Mas sobre o pensamento ainda: no cotidiano o pensamento poder ser mais esgarçado, mais preguiçoso talvez, no meu caso... que não trabalho para terceiros, que não tenho um senhor, um chicote...E m cena não, não dá pra ser assim...
Mas te transforma essa experiência?

AF – Transforma... não é um clichê. Todo mundo fala isso, não é? Mas transforma... Uma pergunta que você poderia me fazer é seguinte: “Mas isso tudo é verdadeiro...ou é químico?” É verdadeiro, mas... também é químico. Assim como você coloca x, y + z e tem um LSD, você passa uma hora por essas situações (fazendo do cérebro uma movióla, e acredita nisso!) e coloca cinqüenta pessoas pagando dinheiro (uma convenção universal, uma formalidade) e não pode parar, não pode parar por nada, e você tem que convencer... então você acaba por produzir o que não ainda ninguém examinou. Tudo isso é real. Esta experiência química é o seguinte: é como se você produzisse mais saliva, como se produzisse mais lágrima, como se o seu batimento cardíaco acelerasse, como se a sua sensibilidade ficasse mais aguçada. Como se descobrissem que um animal noturno não é ágil por igual durante toda noite, mas que em um determinado momento houvesse um ápice, e este ápice o saciasse por toda noite... Então o que há no teatro é esse condensamento...

A gente está falando de liberdade, mas um tema importante relacionado ao teatro é a repetição. Como você vê isso?

AF – O teatro é o espaço da liberdade, não se pode deixar se escravizar. Eu já fui escravo da repetição. Já fiz algumas peças no teatro, onde fiquei cinco vezes por semana repetindo, e isso me incomodou. Eu tentava driblar de forma artística esse incômodo, tenta me aproximar do que era divino ali, mesmo na repetição. Tentava buscar dentro dessa repetição um acontecimento, um happenig. Mas às vezes não tinha jeito, eu ficava entediado. Era uma peça que ficou em cartaz três anos, talvez tenha ficado tempo demais... Nessa peça que estou fazendo agora é totalmente diferente: a repetição está sendo a liberdade. Como se eu tocasse piano todos os dias e cada vez tocasse melhor – é livre. Essa peça é bem interessante, porque como é um espetáculo solo, quer dizer, eu e a platéia sozinhos por uma hora, esta coisa fica muito clara: repetindo uma partitura de uma hora todos os dias, você pode ver como cada dia é totalmente diferente do outro. Cada dia a coisa é única. Essa é a ‘maquininha’ da repetição – não tô falando de trabalho mecânico de dia-a-dia, de ficar carimbando – tô falando de um lugar onde você repete a mesma ação, mas tem risco ali, tem diálogo ali, tem tempo. Eu não faço essa peça em uma hora ou uma hora e meia – eu faço em uma hora. Tem tempo ali. Eu vario no máximo um ou dois minutos. E apesar dessa precisão como é que consegue ser tão diferente um dia do outro?

Como é essa relação com a platéia?


AF – Oscar Wilde falava que o único artista livre é aquele que não pensa no público. O ator pensa no público. Mas ele não pode fazer para o público. O ator pensa sem pensar no público. Você tem espectadores que vão para dar, e espectadores que vão para receber. O que vai para dar é muito mais interessante. Porque o que vai para dar, vai para trocar: ele está dando e recebendo. O outro que vai só para receber, é um espectador é viciadíssimo, é insuportável, ele diz: “Me dá aí!”. É complicado com esse espectador, às vezes dá vontade de parar a peça, mesmo sabendo que eu jamais faria isso. O outro que vem para dar e receber você pode remeter a milhões de coisas. Você pode remeter a sedução, você pode remeter a uma nova amizade. Quando o espectador está ali naquela cadeira em silêncio, ele está me contando mil coisas, ele está falando. Tem um jogo aí. Não é porque ele não está me falando, que ele não está me contando. Tinha que ter no hall de entrada uma esteira com um vídeo-arte em frente, antes de abrir a sala de espetáculo para deixar o espectador quente – aí o cara entra.
Você falou a pouco em acontecimento, em encontro, como é a sua relação com teatro?

AF – Existe uma reciprocidade entre o que o teatro me deu, e o que eu dei para o teatro. Então eu não sou um artista voraz que quer muito uma coisa e luta por isso a qualquer preço. Eu já recebi muita coisa que me causou motivo e curiosidade para ir além. Se não talvez eu já estivesse me relacionando com um outro tipo de experiência artística. Isso é a mesma coisa na relação com o personagem. Existe uma troca entre o ator e o personagem, onde um atravessa o outro. O personagem me modifica é certo, mas eu modifico o personagem também. Outra coisa importante que o teatro vem me dar é a cura. Mas não é qualquer cura, o teatro cura e adoece. Fisicamente então nem se fala. Parece que a gente adoece para curar. Sempre quando se aproxima de uma estréia eu adoeço fisicamente. O teatro me causa febre. O teatro é a febre. Eu tenho que brigar com ela, mas ela é foda! Ela primeiro descodifica seus hábitos, seu próprio corpo. Você não está como você está na feira, como você está em casa. Então como é que você vai lidar com ela? O teatro adoece para caralho. O teatro não dá para largar de mão, às vezes parece mais um vício arrebatador que você não pode larga. Então tem que ter uma preparação. Em tudo na vida tem que ter uma dosagem, a gente tem que descobrir uma alquimia. Então o que me adiante me dedicar intensamente a este trabalho, até onde teve ir minha dedicação? Pra quê, para ser melhor ator? Será que é isso? Por isso na preparação de uma peça, eu devo saber quanto eu devo me dedicar, e quanto eu devo largar de mão. Como se largar de mão fosse tão importante quanto a dedicação. Porque é nesse largar de mão que eu vou poder renovar o meu olhar.

ORDEM DO CHOQUE 2


“Uma palavra vale .001 de uma imagem” (Gary Hill)

D E N T R O E F O R A – Sábado de teatro em uma noite de chuva.

VIAJANTE SULISTA(sentado sozinho em uma mesa de bar com pose de narrador onisciente) Os bodes estão sentados em uma área de fumantes de um bar no Lgo. do Machado e conversam com lentidão. Fumam cachimbo. Acabaram de assistir ao espetáculo “In On It”, de Daniel Macivor, com Emílio de Melo e Fernando Eiras, dirigido por Enrique Diaz que os fez refletir. Na peça vemos dois atores que interpretam dois atores que interpretam alguns personagens de uma peça escrita por um dos atores, e essas muitas camadas se misturam até o ponto em que já se torna difícil separar essas múltiplas realidades, distinguindo o que está dentro e o que está fora do texto. Mise-en-Abyme. Quase já um clássico da nossa literatura moderna. Os bodes fazem uma pausa na discussão porque estão na dúvida se preferem pinga ou chá de jasmin para matar o frio. Bode Bill retoma o fio de meada depois de pedir um conhaque baratinho.

BODE BILL (acendendo o cigarro como um intelectual franco-magrebino) É incrível a entrega do Fernando Eiras que desde o início já está com os olhos marejados e a vulnerabilidade de quem está andando na corda bamba. Impressionante como ele sustenta esse estado até o final.

CABRA-FÊMEA(sonhadora e com fome) Mas nesse aspecto o Emílio de Melo é o contraponto perfeito. Morango e chocolate. Ele é seco, preciso...

BODE-BILL(pigarreando e assumindo um tom de desafio) Entretanto... não estaria já meio cansativa a tendência da arte em explodir as arestas do objeto-obra e sua ilusão de fechamento, para que as entranhas de seu processo de criação – o’real’ – se manifeste? O mecanismo de metalinguagem – que se tornou, como sabemos, protocolar em se tratando de nossos tempos – já não teria perdido sua força, sujeito também a previsões e esquematismos dos quais ele mesmo pretendia fugir? Sem dúvida, o espetáculo vai muito mais além do esquematismo ingênuo de cena-comentário-cena-comentário. Porém, os jogos de metalinguagem tropeçam numa última convenção...

CABRA-FÊMEA – (durona) O texto! Ele impera soberano na encenação, quase que subordinando os atores, não fossem esses tão geniais. Mas eu acho que eles são respeitosos demais com o texto de Macivor, que é bom, mas é distante do universo daqueles atores de carne e osso que estamos vendo diante de nós. Faltou presença do texto deles, do Eiras e do Emílio de Melo. Sem dúvida, ambos são o melhor da peça, que brilha justamente no momento em que ultrapassa as linhas escritas e se insere no corpo. A mão no peito da mulher de Eiras e o espanto de Emílio diante dela: dois atores de rostos abertos ao primeiro tapa – ou beijo –, em entrega total. Do desequilíbrio tênue e arriscado deste encontro, proporcionam instantes de uma criação imediata, efêmera, teatral – e, portanto, real. Não seria pelos truques formais de metalinguagem que algo de real aconteceria. E antes, que pudéssemos julgar ou refletir sobre seus atos, tudo se evapora como se nunca tivesse existido.


BODE BILL(com os olhos fixos em VIAJANTE SULISTA que disfarça o seu interesse na conversa) Como abrir a obra quando o texto vem fechado, lacrado e enlatado?

VIAJANTE SULISTA(conclusivo) A essa altura Cabra-Fêmea pede a conta, porque está enjoada com a mistura de conhaque e frango a passarinho. Os bodes se levantam e vão dormir em um motel cor-de-rosa-neon no bairro do Catete, onde estão hospedados.

C A N T E I R O S D A O B R A – aqui tudo parece ruína, mas é construção?




“É bi-bi-bi no bó-bó-bóde”

Está tudo previsto e calculado. Prevenção máxima contra o risco. Atenção permanente que beira a paranóia, e, de repente, POUUUUUUU... Não sobraram mais que estilhaços do nosso arsenal de segurança. Estávamos errados, porém estávamos certos, a realidade é mesmo ameaçadora. O desastre aqui é proporcional à descarga da tensão que permeava os corpos que se protegiam contra ele. Agora sim, é possível chorar, sem onipotência, desmilinguir-se em pranto sem proteção. E o que tem o teatro a ver com isso? O que podem os bodes diante daquilo que lhes ultrapassa? Talvez: um misto de espionagem e expiação.

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MAM, 2007. Coleção permanente – bom gosto estético para um sábado a tarde. Sem motivos aparentes os bodes deram uma passeada no MAM. Pegaram o 179 e acabaram mais uma vez na coleção permanente. Nós sabemos, tem certos dias que não tem jeito, e agimos mesmo como autômatos: o embotamento geral dos sentidos, o nível de consciência abaixo do desejado, repetir sem sentir que se repete. Nós sabemos, ninguém espera encontrar nada de novo numa coleção permanente. Estávamos lá, trotando pelas galerias cercado de cavalcantis, nerys e portinaris, quando avistamos ao fundo da sala um jovem e bonito casal com um menininho de uns quatro, cincos anos. Parecia-nos que o casal se esforçava em comentar obra a obra na tentativa de captar a atenção da criancinha. Tudo bem: caricatura de pais que se dedicam na educação dos filhos. Mas em um instante de distração o meninozinho se aproxima de uma escultura, que era como um grande cone de gesso, e com a crueldade própria das criancinhas, em um gesto inesperado, espatifa-a no chão. Emergência: a criança berra assustada, seguranças do MAM surgem apressados dos cantos, os pais levam as mãos contra as cabeças. Somos arremessados para fora de nosso confortável automatismo e o mal-estar conclui por si mesmo: “Alguma coisa aconteceu: algo de real passou por aqui.” Os adultos rodearam a obra fraturada e seus estilhaços no chão, enquanto a criança sozinha do lado de fora, chorava muito, chorava muito desconsolada. De quem era a obra mesmo? Qual obra?

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Dois ensaios do filósofo Clément Rosset – O Real e seu duplo e Principio da Crueldade – tratam da questão do real, e curiosamente seus textos não prestam nenhuma referência aberta a Antonin Artaud. Dizemos curiosamente, pois os títulos dos ensaios aludem ao célebre livro Teatro e seu Duplo, no qual o artista francês apresenta seus projetos para um teatro da crueldade. Está certo que os terrenos de ação desses autores são distintos, Rosset tece suas reflexões no campo da crítica filosófica, enquanto Artaud direciona seus projetos para campo da arte e cultura. No entanto, seria possível afirmar que o modo como operam seus textos internamente permitiria aproximações. Em Principio da Crueldade, por exemplo, a referência a Artaud parece bem clara quando Rosset chega à seguinte proposição: “O real é cruel.” Como Artaud já vinha sendo trabalhado exaustivamente por outros filósofos contemporâneos de Rosset, seria ingenuidade desconfiar de mera coincidência. O que quer este deliberado silêncio de Rosset?

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Rosset critica a tradição racionalista que tem como semelhança a elaboração de um pensamento de insuficiência do real. O real, embora objeto de toda filosofia, parece não comportar em si as investidas totalizantes do racionalismo, e com isso passa a se apresentar como insuficiente. Isto porque o real é, “ao mesmo tempo, amplo demais para ser percorrido e escasso demais para ser compreendido.”. A tradição racionalista propõe encontrar fora do real os segredos desse próprio real. A ‘realidade’ tal como se apresenta para nós, em sua imediatez, é desprezada em favor de um principio exterior, que confere a esta experiência imediata, um fundamento, um sentido, uma explicação. O real é, portanto, motivo de habituais tropeços por parte da filosofia. A realidade, não podendo ser explicada por si mesma, seria de certo modo para sempre ininteligível “ –mas ser ininteligível não equivale a ser irreal.” Ao conferir à razão um status superior, o pensamento filosófico se distancia progressivamente de uma certa experiência ‘ingênua’, imediata do mundo. Não negamos simplesmente o modo como as coisas se apresentam para nós, em sua aparência, mas deslocamos essa manifestação ‘ingênua’ das coisas, em favor de um sentido mais profundo, mais geral, inteligível – e é a este aspecto que atribuímos valor.

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A desconfiança de grande parte da filosofia com relação ao real deve-se não apenas ao fato dele ser inexplicável se considerado por si mesmo, mas, sobretudo, pelo fato dele ser cruel. A realidade em sua gênese, despojada de ornamentos, é cruel e indigesta. E desta crueldade original se desdobraria o caráter intrinsecamente trágico e muitas vezes doloroso do real, que tendo no acaso sua força motora seria sempre imprevisível e incontrolável.

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Seria possível afirmar que temos como legado este pensamento de insuficiência do real. Mas há algo que se volta contra essa forma de se produzir sentidos e de conceber a própria vida. Talvez, grosso modo, a realidade possa ser regulada, prevista ou representada. Porém, o real sempre escapa a essa captura: o fato de ser ininteligível reivindicaria apenas que pudesse ser experimentado, e não interpretado, que pudesse ser sentido, e não refletido. O real nos afeta imediatamente, não como uma verdade geral, lógica ou discurso articulado, mas como uma verdade única, necessária, e imprevisível (talvez: um cone de gesso em mil pedacinhos desorbitados).
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E o que se passa no palco da crueldade? “O espetáculo não mais como reflexo, mas como força”. A crueldade do pensamento de Artaud estilhaça a tradição da mimese, e subverte o convencional jogo de espelhos entre realidade e ilusão: “O duplo do teatro é o real não utilizado pelos homens de hoje.” Qual tradição ataca Artaud? Aquela que em favor do controle e segurança da representação rechaça a crueza do real. Aquela que sufoca ao máximo a força da expressão teatral, reduzindo-a a reprodução de gestos cotidianos, linguagem articulada e coerência psicológica, que defende a primazia do texto sobre a encenação. “Eu disse crueldade como poderia ter dito vida” escreve Artaud em O teatro e seu duplo, e vida, define o autor: “é o centro frágil e turbulento onde as formas não alcançam”. Sendo assim, o teatro da crueldade (assim como o flagelo da peste e a magia) é uma ação de ruptura, de esboroamento, das fronteiras estreitas e falsas entre forma e representação, entre a cultura e a vida: “Há uma espécie de estranho sol em que parece que o difícil e o impossível tornam-se de repente nosso elemento normal”.

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Um cone de gesso em mil pedacinhos desorbitados no espaço: que objeto sobrevive ao impacto do ato cruel? Seriam esses cacos amontoados no chão, o objeto real livre de projeções? Ou real mesmo, seria apenas o instante único do choque? A crueldade “capaz de passar por cima de tudo”, capaz de perfurar a linguagem para encontrar a vida, se oferece aqui como possibilidade de desmontar o esquema projetivo do signo e criar aberturas, invaginações, para emersão do desconhecido, da experiência imediata e insignificante.
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É importante, contudo, como dizia Nietzsche, distinguir as feridas grosseiras das feridas sutis. As primeiras nos paralisam em uma repetição estéril e neurótica dos acontecimentos (a enxurrada de imagens idênticas de torres gêmeas caindo, por ex.). São as segundas, que, sutilmente, nos espetam como insetos, imperceptíveis, incapturáveis e que abrem um curto espaço àquilo que não se apreende em um sentido determinado; são essas feridas que nos obrigam a caminhar por territórios desconhecidos. E talvez, quem sabe, a partir daí falar em real já não tenha nenhum sentido, como jamais teve no País das Maravilhas.

ORDEM DO CHOQUE 1


“Todas as nossas idéias sobre a vida devem ser retomadas numa época em que nada mais adere à vida. A poesia que não está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas reaparece de repente, pelo lado mau das coisas. Nunca se viram tantos crimes, cuja a gratuita estranheza só se explica por nossa impotência para possuir a vida.”

TRANSFORMANDO VENENO EM CURA -- ENTREVISTA COM HAMILTON VAZ PEREIRA


Hamilton Vaz Pereira e sua trupe produziram abalos sísmicos na vida cultural carioca entre os anos 70 e 80 com Asdrúbal Trouxe o Trombone. Desde então não parou mais: com uma produção infatigável, que quer sair da sala de estar para pensar a vida, (como já fazia o gregão antigo, sua grande fonte de inspiração), Lord Hamilton está de volta como professor, no teatro O Tablado, (onde um dia foi aluno) e com a produção de dois espetáculos engatilhada - Deus é química de Fernanda Torres que estréia em maio, com Luiz Fernando Guimarães e Jorge Mautner no elenco e Colapso, texto seu que deve estrear em outubro.

AB- Atualmente, que lugar ocupa o teatro dentro da nossa cultura?

H – Eu vejo o seguinte, o teatro é como se fosse um oásis no meio de um deserto. É o espaço onde algumas pessoas se encontram para produzir ou participar de alguma coisa muito semelhante à vida. Isso tem a ver com uma vida concentrada, onde você afasta o mundo conhecido, para assistir à alguma coisa nova, que te esclareça algum ponto de seus sentimentos, da sua vontade de viver ou da sua não-vontade de viver. Esse espaço inventado pelo gregão com o nome de teatro é alguma coisa muito boa e seria melhor se a humanidade aproveitasse mais isso. A tão falada globalização homogeneíza as pessoas e os lugares : precisamos ser os mesmos para viver no mesmo planeta. O teatro deve então exatamente exaltar a diferença, a singularidade.

AB – Seus últimos trabalhos tem uma influência bem significativa da mitologia, da filosofia, dos clássicos gregos em geral. O que essa herança cultural representa para você?

H - Teve um certo momento na minha criação para o palco, que eu comecei a me envolver com os clássicos. No caso de uma pessoa ligada ao teatro se envolver com os textos antigos não é nenhuma surpresa. Desde o banco escolar você ouve falar ou lê nos livros, que a Grécia é o berço da civilização ocidental, e o que isso significa? Significa que o gregão inventou tais e tais coisas que norteiam a vida da gente. Então essa invenção do teatro serve como uma espécie de antídoto pra infelicidade terrestre. Para você pensar em ter alguma compreensão da vida, você terá que entender que a vida é alegria e tristeza ou é dor e prazer, Dionísio e Apolo o tempo todo. O que significa Dionísio no reino de Apolo? Se você louva Dionísio como deus no teatro você está fudido, porque Dionísio leva a morte, Dionísio é veneno. Se você é um seguidor de Dionísio você pode ter a certeza que você vai morrer mais adiante. Você vai cantar, você vai dançar, você vai beber, vai trepar, mas o último estágio é a morte. O que acontece se você faz teatro: você pega Dionísio e bota no reino de Apolo. Ou seja, o que era veneno se transforma em remédio, para te curar, pra curar o espectador. Então você finge que mata, mas não mata, você finge que morre, mas não morre e por aí vai. Então quando há uns vinte e pouco anos eu saquei isso por força de leituras e convívio com certas pessoas, eu achei muito lindo. Eu pensei então: é por isso que eu gosto de teatro. Eu não gosto de metralhadora, eu gosto de guitarra elétrica, tá entendendo? Eu não gosto de porrada, eu nunca briguei fisicamente com ninguém na minha vida, e pretendo não brigar com vocês (risos). Talvez alguma contribuição que eu tenha dado ao teatro até agora, com relação a esse aspecto dos clássicos, tenha a ver com o fato de que nunca me intimidei com eles. Por exemplo, se estamos falando de Cervantes, eu digo, “ok, eu sou o Hamilton, muito prazer, vamos trabalhar juntos”. Eu tenho que ficar a vontade para criar.

AB- O que é, agora, estar retornando ao teatro onde você iniciou sua carreira?Que transformações você identifica nesta passagem entre o jovem estudante de teatro e agora o artista maduro?

H- Muito interessante, porque eu tenho sentido já de alguns meses pra cá uma coisa que é própria da idade. Eu tenho 57 anos, então além de pensar no futuro, começo também a sentir que tenho um passado. Eu nunca tinha prestado muita atenção no passado, mas agora por força da idade tenho sentido essa necessidade avaliar o que eu andei construindo. Esse retorno ao Tablado chega no momento em que eu me sinto meio um Ulisses que retorna para sua Ítaca, tá entendendo? Quanto às mudanças... a primeira coisa que me ocorre é: mudança nenhuma. E depois tem todas as mudanças do mundo. O mesmo tesão que eu tenho de inventar uma cena, de produzir, de dirigir um espetáculo teatral continua o mesmo. Mas tem o lado da velhice não é? Enfim, eu fico pensando assim... eu tava conversando com a Lena, a minha parceira mais freqüente nos últimos anos: na hora de dirigir, eu gosto de me atirar no chão, de correr e não sei o quê. Quanto é que isso vai ter que mudar? Meus espetáculos vão ser mais sentados, só fumando charutos ao lado da lareira?

AB- Você tem ido ao teatro, você tem gostado do que vê, como você tá avaliando?

H - A grande maioria do que assisto são coisas muito fracas, mas, assisti ao Hamlet e fiquei muito contente. Tenho escutado amigos meus, espertos e cultos, criticando a montagem dizendo coisas idênticas ao que a crítica escreveu no jornal, repetindo palavra por palavra. Eu acho o espetáculo Hamlet de Shakespeare, Aderbal e Wagner Moura uma coisa muito boa - muito acima da média do que eu tenho assistido. Aí, quando escuto comentários negativos penso que isso é papo de quem não tem o que pensar da vida.Vai gostar de quê? De monólogo de mulher falando mal de homem? Poxa as mulheres lutaram anos pra se tornarem autônomas... que besteira rapaz! E o público acha graça disso? Muito esquisito... eu acho esses monólogos o fim da picada!

AB – O que você acha da crítica teatral que sai na mídia impressa?

H –A minha experiência é que tem me servido muito pouco. A crítica de maneira geral tem uma pretensa imparcialidade que não existe porque teatro é paixão. Me espanta muitíssimo, para ficar só nos críticos cariocas (que permanecem os mesmos há anos), que nenhum tenha tido até hoje a capacidade ou o interesse, de produzir livros que analisem e lancem reflexões sobre o que assistem.

O QUE PODE O ROSTO? A VISITA DOS BODES AO “SOLOS DE DANÇA”


Os corpos experimentaram seus limites no evento Solos de Dança que aconteceu no sábado do dia 24 de março no SESC Copacabana, e os bodes compareceram para testemunhar. Ficamos com uma dúvida, entretanto: a dança do século XXI conseguiu sair da dicotomia expressão x objetividade que dominou o cenário das artes cênicas do século XX? Entre a galera tabul a rasa, sem subjetividade, tipo “cara de nada” e a turma do caras e bocas, às vezes um tanto quanto caricata, recolocamos a célebre questão apresentada pelo filósofo luso-holandês do século XVII, Baruch Espinoza, dessa vez nos indagando: o que pode um rosto na dança contemporânea? Existirá uma cara que também dança? Uma expressão inumana? Um sentimento sem forma? Os bodes agradecem à Mônica Buriti e Jamil Cardoso que ofereceram fagulhas de respostas à essas perguntinhas maledetas que espetam o cérebro como pernilongos em noites de verão.

ATO I – Do subterrâneo dos bodódromos até os holofotes da escrita, nos


“Bééé´! Bééé! Bééé! Bode bom de bibiricar”

BODE BIU (Como um arauto) - Aqui não tem homem, aqui também não tem mulher, aqui não tem essas diferenças, todo mundo é de menor: essa é nossa moeda. Arena a gente arma em qualquer buraco!

CABRA FÊMEA (do sussurro ao berro num crescente de nervosismo) - Um bode é preso de um lado e o outro é preso do outro, a gente fica em volta embolado gritando, mexendo e torcido. Os bodes ’stão preparados a gente amarra os culhões deles com arame farpado, eles ficam vermelhos pronto pra batalha com os olhos esbugalhados e bem pra fora, a gente amarra em cada um dos chifres um pedaço de ferro bem afiado para tornar a cena mais colorida. Então a gente solta os bichos e começa a festa, a gente canta: “Bééé! Bode bom de bibiricar. Bééé!”. Crueldade até pode ser, mas a culpa mesmo é da terra.

O VIAJANTE SULISTA (em tom neutro enquanto amarra os cadarços do sapato) - A cidade de Petrolina (PE), cantada por Caetano, Luis Gonzaga e outros tantos por suas intrigas com a prima-irmã Juazeiro (BA), oferece, além é claro da magnitude do rio São Franscisco, uma peculiar atração: o Bodódromo.É fascinante que nos últimos tempos esta região aparentemente inóspita, também conhecida como ‘Polígono da Seca’ venha dinamizando sua performance econômica, sobretudo no setor da agricultura e do turismo. A prima-irmã Juazeiro com seus bem-sucedidos projetos de cultivo de frutas tropicais, nos quais também se insere a produção do sofisticado vinho do Sertão ‘Azevedo’, passou a ser referida como a ‘Califórrnia brasileira’. Neste ponto a sua atenção, caro leitor, é solicitada, pois aqui se inscrevem as referências chaves ao nosso desejo: VINHO & BODE: AGRICULTURA DO MAL.