segunda-feira, 31 de agosto de 2009

NO FINAL ERA O MOVIMENTO (NO FINAL NÃO HAVIA, POIS, FINAL)

“Jogar não é emitir sinais; é ter, sob o invólucro da pele, o pâncreas, o baço, a vagina, o fígado, o rim e as tripas, todos os circuitos, todos os tubos, as carnes, pulsantes sob a pele, todo o corpo anatômico, todo o corpo sem nome, todo o corpo escondido, todo o corpo sangrando, invisível, irrigado, exigindo, mexendo ali debaixo, reanimando-se, falando.” (VALÈRE NOVARINA)


E será que a medicina finalmente descobriu o que acontece lá dentro do corpo de um artista quando ele está atuando ou dançando? Nesses corpos ninguém toca – nem mesmo a morte os amarraria numa cama de hospital para autopsia. Isso aí inerte na maca de metal sob a luz fria, em que os médicos se debruçam, não passa de letras mortas sobre o papel. Os corpos são tubos de ar rodeados de carne por todos os lados, define o artista-filósofo. Nesse sentido, já não há mais razão em falar de dentro ou de fora.

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Algumas perdas consideráveis para dança com raros destaques (se comparadas à sobrefalada perda de Michael Jackson): Pina Bausch e Merce Cunningham.
Valère Novarina afirma em seu texto Para Louis de Funès que o homem só possui uma aspiração, uma única paixão que o anima: mudar o corpo dado: Michael levou à risca essa premissa e refez seu corpo tantas e tantas vezes, que ao final da vida seu auto-retrato era um verdadeiro retalho de feridas pra lá de grosseiras. Certa vez um renomado escritor brasileiro afirmou, em emocionante defesa do astro pop no auge dos escândalos de pedofilia, que em um futuro não muito distante nos lembraríamos de Michael como genitor de uma linhagem de mutantes. Sem dúvida, uma boa imagem. Mas o fato é que o artista-mutante, que revolucionou a cultura pop, se tornou um prato cheio, tanto para os fetichismos do show business, quanto para os moralistas de plantão. Não há dúvida que a indústria cultural usou a e abusou das ‘excentricidades’ do astro, mas, ao mesmo tempo, talvez, nossas lentes sejam humanas demasiado humanas para compreender o pós-humanismo de Michael Jackson. O que nos assombra é que se trata de um caso único de um corpo sem nenhum fantasma – em Michael tudo é pura concretude e isso é assustador para nós.

Pina Bausch, Merce Cunningham e Michael Jackson, corpos dançantes da segunda metade do século XX que se evaporaram em um breve espaço de tempo. Apesar da mesma paixão nos três, em desfazer o corpo dado, reposicioná-lo na fronteira e compor um corpo transicional, é preciso distinguir os casos: Como comparar a tragicidade e o pós-expressionismo dos movimentos-repetições da criadora de Café Müller, com a objetividade e o puro movimento, não-expressivo, de Cunningham e o corpo simultaneamente deslizante e plástico do inventor do moonwalk? Para quem, como nós bodes, que infelizmente não tivemos a oportunidade de vê-los ao vivo, vale dar uma conferida no youtube.


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Não sabemos ainda o que pode o corpo. E com essa ignorância bendita gozamos como as criancinhas perverso-poliformas de Dr. Sigmund, dando as costas e a bunda aos caquéticos senhores de ciência que insistem em nos apresentar uma cartilha falida dos nossos afetos. As trinta mil mutações genéticas que produzem um quadro esquizofrênico, o nariz ausente de Michael, os pingüins de Cunningham e as costelas flutuantes de Pina mantêm abertas as janelas por onde o universo sopra – “This, planetary music.”

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