segunda-feira, 31 de agosto de 2009

C A N T E I R O S D A O B R A – aqui tudo parece ruína, mas é construção?




“É bi-bi-bi no bó-bó-bóde”

Está tudo previsto e calculado. Prevenção máxima contra o risco. Atenção permanente que beira a paranóia, e, de repente, POUUUUUUU... Não sobraram mais que estilhaços do nosso arsenal de segurança. Estávamos errados, porém estávamos certos, a realidade é mesmo ameaçadora. O desastre aqui é proporcional à descarga da tensão que permeava os corpos que se protegiam contra ele. Agora sim, é possível chorar, sem onipotência, desmilinguir-se em pranto sem proteção. E o que tem o teatro a ver com isso? O que podem os bodes diante daquilo que lhes ultrapassa? Talvez: um misto de espionagem e expiação.

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MAM, 2007. Coleção permanente – bom gosto estético para um sábado a tarde. Sem motivos aparentes os bodes deram uma passeada no MAM. Pegaram o 179 e acabaram mais uma vez na coleção permanente. Nós sabemos, tem certos dias que não tem jeito, e agimos mesmo como autômatos: o embotamento geral dos sentidos, o nível de consciência abaixo do desejado, repetir sem sentir que se repete. Nós sabemos, ninguém espera encontrar nada de novo numa coleção permanente. Estávamos lá, trotando pelas galerias cercado de cavalcantis, nerys e portinaris, quando avistamos ao fundo da sala um jovem e bonito casal com um menininho de uns quatro, cincos anos. Parecia-nos que o casal se esforçava em comentar obra a obra na tentativa de captar a atenção da criancinha. Tudo bem: caricatura de pais que se dedicam na educação dos filhos. Mas em um instante de distração o meninozinho se aproxima de uma escultura, que era como um grande cone de gesso, e com a crueldade própria das criancinhas, em um gesto inesperado, espatifa-a no chão. Emergência: a criança berra assustada, seguranças do MAM surgem apressados dos cantos, os pais levam as mãos contra as cabeças. Somos arremessados para fora de nosso confortável automatismo e o mal-estar conclui por si mesmo: “Alguma coisa aconteceu: algo de real passou por aqui.” Os adultos rodearam a obra fraturada e seus estilhaços no chão, enquanto a criança sozinha do lado de fora, chorava muito, chorava muito desconsolada. De quem era a obra mesmo? Qual obra?

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Dois ensaios do filósofo Clément Rosset – O Real e seu duplo e Principio da Crueldade – tratam da questão do real, e curiosamente seus textos não prestam nenhuma referência aberta a Antonin Artaud. Dizemos curiosamente, pois os títulos dos ensaios aludem ao célebre livro Teatro e seu Duplo, no qual o artista francês apresenta seus projetos para um teatro da crueldade. Está certo que os terrenos de ação desses autores são distintos, Rosset tece suas reflexões no campo da crítica filosófica, enquanto Artaud direciona seus projetos para campo da arte e cultura. No entanto, seria possível afirmar que o modo como operam seus textos internamente permitiria aproximações. Em Principio da Crueldade, por exemplo, a referência a Artaud parece bem clara quando Rosset chega à seguinte proposição: “O real é cruel.” Como Artaud já vinha sendo trabalhado exaustivamente por outros filósofos contemporâneos de Rosset, seria ingenuidade desconfiar de mera coincidência. O que quer este deliberado silêncio de Rosset?

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Rosset critica a tradição racionalista que tem como semelhança a elaboração de um pensamento de insuficiência do real. O real, embora objeto de toda filosofia, parece não comportar em si as investidas totalizantes do racionalismo, e com isso passa a se apresentar como insuficiente. Isto porque o real é, “ao mesmo tempo, amplo demais para ser percorrido e escasso demais para ser compreendido.”. A tradição racionalista propõe encontrar fora do real os segredos desse próprio real. A ‘realidade’ tal como se apresenta para nós, em sua imediatez, é desprezada em favor de um principio exterior, que confere a esta experiência imediata, um fundamento, um sentido, uma explicação. O real é, portanto, motivo de habituais tropeços por parte da filosofia. A realidade, não podendo ser explicada por si mesma, seria de certo modo para sempre ininteligível “ –mas ser ininteligível não equivale a ser irreal.” Ao conferir à razão um status superior, o pensamento filosófico se distancia progressivamente de uma certa experiência ‘ingênua’, imediata do mundo. Não negamos simplesmente o modo como as coisas se apresentam para nós, em sua aparência, mas deslocamos essa manifestação ‘ingênua’ das coisas, em favor de um sentido mais profundo, mais geral, inteligível – e é a este aspecto que atribuímos valor.

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A desconfiança de grande parte da filosofia com relação ao real deve-se não apenas ao fato dele ser inexplicável se considerado por si mesmo, mas, sobretudo, pelo fato dele ser cruel. A realidade em sua gênese, despojada de ornamentos, é cruel e indigesta. E desta crueldade original se desdobraria o caráter intrinsecamente trágico e muitas vezes doloroso do real, que tendo no acaso sua força motora seria sempre imprevisível e incontrolável.

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Seria possível afirmar que temos como legado este pensamento de insuficiência do real. Mas há algo que se volta contra essa forma de se produzir sentidos e de conceber a própria vida. Talvez, grosso modo, a realidade possa ser regulada, prevista ou representada. Porém, o real sempre escapa a essa captura: o fato de ser ininteligível reivindicaria apenas que pudesse ser experimentado, e não interpretado, que pudesse ser sentido, e não refletido. O real nos afeta imediatamente, não como uma verdade geral, lógica ou discurso articulado, mas como uma verdade única, necessária, e imprevisível (talvez: um cone de gesso em mil pedacinhos desorbitados).
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E o que se passa no palco da crueldade? “O espetáculo não mais como reflexo, mas como força”. A crueldade do pensamento de Artaud estilhaça a tradição da mimese, e subverte o convencional jogo de espelhos entre realidade e ilusão: “O duplo do teatro é o real não utilizado pelos homens de hoje.” Qual tradição ataca Artaud? Aquela que em favor do controle e segurança da representação rechaça a crueza do real. Aquela que sufoca ao máximo a força da expressão teatral, reduzindo-a a reprodução de gestos cotidianos, linguagem articulada e coerência psicológica, que defende a primazia do texto sobre a encenação. “Eu disse crueldade como poderia ter dito vida” escreve Artaud em O teatro e seu duplo, e vida, define o autor: “é o centro frágil e turbulento onde as formas não alcançam”. Sendo assim, o teatro da crueldade (assim como o flagelo da peste e a magia) é uma ação de ruptura, de esboroamento, das fronteiras estreitas e falsas entre forma e representação, entre a cultura e a vida: “Há uma espécie de estranho sol em que parece que o difícil e o impossível tornam-se de repente nosso elemento normal”.

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Um cone de gesso em mil pedacinhos desorbitados no espaço: que objeto sobrevive ao impacto do ato cruel? Seriam esses cacos amontoados no chão, o objeto real livre de projeções? Ou real mesmo, seria apenas o instante único do choque? A crueldade “capaz de passar por cima de tudo”, capaz de perfurar a linguagem para encontrar a vida, se oferece aqui como possibilidade de desmontar o esquema projetivo do signo e criar aberturas, invaginações, para emersão do desconhecido, da experiência imediata e insignificante.
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É importante, contudo, como dizia Nietzsche, distinguir as feridas grosseiras das feridas sutis. As primeiras nos paralisam em uma repetição estéril e neurótica dos acontecimentos (a enxurrada de imagens idênticas de torres gêmeas caindo, por ex.). São as segundas, que, sutilmente, nos espetam como insetos, imperceptíveis, incapturáveis e que abrem um curto espaço àquilo que não se apreende em um sentido determinado; são essas feridas que nos obrigam a caminhar por territórios desconhecidos. E talvez, quem sabe, a partir daí falar em real já não tenha nenhum sentido, como jamais teve no País das Maravilhas.

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