quinta-feira, 17 de junho de 2010

Flotilhas da Terra

"O próprio Messias, apenas ele, é que perfaz todo o advir histórico, no sentido que só ele liberta, cumpre, leva ao cabo a sua relação com o próprio messiânico. Eis por que nada de histórico pode, por vontade própria e por si mesmo, querer se referir ao messiânico. Eis por que o Reino de Deus não é o telos da dinâmica histórica; ele não pode ser posto como meta. Visto historicamente, ele não é meta, mas fim. Eis por que a ordem do profano não pode se edificar segundo o pensamento do Reino de Deus, eis por que a teocracia não tem nenhum sentido político, mas tão-somente um sentido religioso." WALTER BENJAMIN

Assunto espinhoso. Antes de tocá-lo, vamos às recomendações:

vivemos num momento de um adaptável relativismo no qual tratar com espinhos soa na maioria das vezes como um ‘velho’ despropósito. É a tal cordialidade um tanto quanto brasileira, um tanto quanto litorânea que por vezes identifica o relativo com o consensual – e assim para o alívio geral da nação, para atenuar os constrangimentos e desfazer as más impressões engolimos seco e silenciamos. Lavamos as mãos. Silêncio para meditação de uns, silêncio para indiferença de outros, mas é certo que só os que aspiram à inocência silenciam:

- Furem-me os dedos. Que venham os espinhos! – esbraveja o pianista.

                                          * * *

Há tempos o conflito entre Israel e Palestina é uma questão contraditória e constrangedora para mim; e se publicamente – isto é, nas mesas de bar – sempre a tratei com parcimônia, meus silêncios continham o protesto e a agitação desregrada das multidões. Gaguejava, desconversava, ouvia, mas nunca sabia o que dizer exatamente ao ser questionado por um amigo. Apesar de ter ascendência judaica é impossível negar uma certa ‘sensibilidade social’ que tendenciosamente me identifica com os mais fracos. Eu sei, ‘sensibilidade’ essa que uma vez exposta é alvo fácil para críticas, já que diz mais sobre o meu distanciamento, o lugar de segurança e conforto de onde me expresso, do que propriamente de uma ação efetiva e arriscada como daqueles que estão de igual para igual e sentem suas lutas diretamente na pele.

Na minha formação o judaísmo me foi transmitido de forma leve e quase imperceptível – o que pode soar estranho para a pesadez da religião das tábuas dos mandamentos. No meu caso o judaísmo me foi transmitido como um aroma – um aroma de judaísmo que têm em sua leveza justamente a força de sua penetração; aroma que por não ser abertamente visível e papável penetra com pouca resistência nos lugares mais recônditos e improváveis de minha personalidade. Meu pai que estudou em um colégio de rabinos pôde abertamente negar a ortodoxia da religião – assim como poderia tê-la abraçada. Mas no meu caso é bem diferente, o aroma de judaísmo não me permite negá-lo, mas tão pouco, abraçá-lo. Um impasse é bem verdade – que se desdobra em muitos outros caminhos. O judaísmo diferentemente do catolicismo não é uma religião apostólica, portanto, termos como “judeu não-praticante” parecem ser desprovidos de qualquer força. Ou se é ou não se é judeu. Enquanto para os apostólicos a conversão e o desejo de arrecadar um maior rebanho é um princípio, para a lógica do judaísmo é justamente o inverso. O judaísmo é para poucos, o judaísmo é apenas para os escolhidos. Permaneço no impasse. Parece ser esta a melhor saída. Judaísmo não-praticante? Judaísmo litorâneo?

Voltando ao assunto das contradições e constrangimentos com relação aos conflitos com Palestina. Apesar desta ‘sensibilidade’ social sempre me senti internamente impedido de me posicionar pró-palestina, mesmo que discordando radicalmente das retaliações desproporcionais de Israel, a covardia das sanções à Gaza e o estúpido estímulo a colonização em áreas de conflito. Esse impedimento me remonta aos lugares recônditos e improváveis por onde penetrou na infância o aroma de judaísmo. As histórias de sofrimento, os êxodos, as partidas e os eternos retornos dos antepassados que falam diretamente ao sangue e às minhas vísceras. Lembro-me uma vez na infância que ao deixar o resto de comida no prato, meu avô esbravejou: “seus antepassados comiam baratas e você não quer mais!?” Não o culpo: é a religião dos desertos, da inóspita geografia da alma que falou ali.

Outro dia me peguei pensando na condição absurda da minha existência: se não fosse a ascensão de Hitler e Stalin, se não fosse o massacre de tantas vidas, eu não existiria. Se não fosse a fuga de meus antepassados para o Brasil eu não estaria aqui. Absurdo humano: intolerável e real. E ainda o pior: confrontado com a terrível ficção de abrir mão de minha própria existência para salvar milhões de vidas do nazismo, a resposta foi imediata, categórica e fatal: não, jamais abria mão de estar vivo.

Os últimos episódios das flotilhas humanitárias e a recente proibição da entrada de Chomsky no território israelense remexeram mais uma vez nesse saco de gatos, de impasses, contradições e constrangimentos durante dias. Mas surpreendentemente desta vez algumas fichas caíram. O primeiro ponto que me pareceu mais claro é a tendência em identificar integralmente o estado de Israel com a cultura e a religião judaica – uma tendência comum tanto à direita israelense quanto aos clamores anti-semitas da Europa. Uma tendência que talvez tenha suas origens nas distorções do sionismo que, ao meu ver, interpretou erroneamente uma metáfora teológica como metáfora política. Pensar a terra prometida a partir dos termos redutivos do estado-nação e das instituições modernas dificilmente daria certo. A identificação entre estado de Israel e cultura/religião judaica me parece imprópria, já que a lógica dos estados-nação em nada se assemelha à lógica do judaísmo. O que está em jogo nos estados-nação é justamente o que observamos em Israel, ou seja, militarismo, expansionismo, etnocentrismos, e identificações forçadas entre os indivíduos.Muito provavelmente as tribos nômades do judaísmo, apesar de distantes da terra prometida, tinham um sentido de comunidade muito mais potente do que o atual estado de Israel.

Conversando com minha avó ela destacou uma questão bastante interessante sobre a lógica do judaísmo: o povo judeu sempre foi apto para uma resistência pacífica e para a não-agressão. Pensando sobre isso eu complementaria: a tradição judaica apenas se manteve durante mais cinco mil anos porque sempre foi uma religião de fuga, de nomadismo, de resistência pacífica e nunca do confronto, da estupidez da retaliação. A terra prometida é a terra por vir, e nunca a terra que já é – daí o equívoco do sionismo. E para avançarmos mais nesta questão, me aproprio dos interessantes conceitos de Deleuze e Guatari de territorialização, desterritorialização e terra. Um território não é a própria terra. O território é simplesmente um lugar de domínio e propriedade, mas a própria terra não se captura jamais, não se domina jamais. É justamente nos movimentos de desterritorialização que a terra se faz notar. No momento em que os domínios e propriedades são abalados por um tremor e não há outra opção senão colocar-se em fuga, em deslocamento e em êxodo. As antigas demarcações do território de nada valem agora e temos então que nos dirigir a terra por vir. Aqui está o perigo de se identificar a própria terra com um estado.

Nesse sentido, a lógica do judaísmo me parece integralmente oposta ao do estado de Israel e tal identificação forçosa entre Israel e judaísmo me parece inteiramente imprópria – afirmação esta que ironicamente me aproxima dos ultra-ortodoxos que se posicionam contra o estado de Israel. O que me parece necessário apontar é que, ao meu ver, as consequências desta identificação artificial entre o estado de Israel e a religião judaica produzirão infelizmente a decadência do judaísmo. Durante mais de cinco mil anos apesar de horrores como o do holocausto, o espírito do judaísmo se manteve vivo pelo o chamado da terra, justamente em seus movimentos de territorialização e desterritorização. Mas agora é diferente. A terra tornou-se domínio, propriedade, estado militarizado e expansionista, e o espírito vivo do judaísmo que a cada êxodo, a cada deslocamento e desterritorialização se atualizava agora já não mais o faz. Percebo uma geração de ‘judeus não-praticantes’ que com a estúpida lógica do estado israelense busca se distanciar, esquecer ou silenciar-se diante da tradição judaica. Chega o momento de recusar o estúpido imperativo de: ou se está com Israel ou não se é judeu.

Um comentário:

  1. Pedrinho!! Pig aqui!
    Lindo isso, muito esclarecedor, muito bem escrito. Foi importante para mim, ler isso aqui. Humildemente sincero o texto.
    Obrigado, adorei!


    Beijo grande!

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